É 1808. Com um imenso território virgem, escassamente povoado, o Brasil tem pouco mais de três milhões de habitantes – menos de dois por cento da sua população atual. De cada três brasileiros, um é escravo. O comércio é à base de escambo e existem poucas moedas em circulação. E, obviamente, não existem leis de proteção ao consumidor.
Esse é o cenário em que se passa a obra do jornalista Laurentino Gomes, “1808 como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. Desde o seu lançamento há um ano, em setembro de 2007, mantêm-se entre os mais vendidos do país, com mais de 350 mil exemplares só no Brasil.
Resultado de uma pesquisa de dez anos, “1808” relata, as razões e as conseqüências da fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1807 e 1808.
Para Consumidor Moderno, conversei com Laurentino abordando exclusivamente a questão das relações de consumo naquela época.
Como eram as relações de consumo em 1808?
Laurentino Gomes: Na época da chegada da corte, o Brasil era uma colônia atrasada, ignorante e proibida, em que 98% dos habitantes eram analfabetos. Não havia ensino superior e imprensa. A circulação de livros era censurada e o direito de reunião para discutir idéias, proibido. Com um imenso território virgem, escassamente povoado, o Brasil tinha pouco mais de três milhões de habitantes – menos de dois por cento da sua população atual. De cada três brasileiros, um era escravo. O comércio era feito à base de escambo. Havia poucas moedas em circulação. E, obviamente, não existiam leis de proteção ao consumidor.
A relação entre consumo e cidadania existia? Como era essa consciência há 200 anos?
Imagine uma fazenda nos dias atuais no interior da Amazônia, sem estrada, energia elétrica, telefone, água tratada ou qualquer comodidade da vida moderna. Assim era o Brasil de duzentos anos atrás. Entre outras carências, a colônia precisava de estradas, escolas, tribunais, fábricas, bancos, moeda, comércio, imprensa, biblioteca, hospitais, comunicações eficientes. Em especial, necessitava de um governo organizado. Havia leis e juizes, mas poucas pessoas tinha acesso à Justiça. Nas vastas regiões do interior, a lei era aplicada pelos próprios fazendeiros e chefes locais, de acordo com seus interesses. Não havia qualquer noção de cidadania. Na capital a situação não era muito diferente. Nos treze anos em que a corte portuguesa esteve no Brasil, uma bomba populacional abalou o Rio de Janeiro. O número de habitantes, que era de 60 000 em 1808, dobrou em 1821. Metade dessa população era escrava. A criminalidade atingiu índices altíssimos. Roubos e assassinatos aconteciam a todo momento. No porto, navios eram alvos de pirataria. Gangues de arruaceiros percorriam as ruas atacando as pessoas a golpes de faca e estilete. Oficialmente proibidos, a prostituição e o jogo eram praticados à luz do dia.
Muito se diz da cordialidade do brasileiro. Esse é um traço de nossa gente que remonta da forma como fomos colonizados?
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico Raízes do Brasil, mostrou que o “homem codial” brasileiro não é necessariamente sinônimo de simpatia, gentiliza e eficiência no atendimento. Ao contrário, o brasileiro cordial é um tipo dissimulado, avesso ao esforço de crescimento e ao trabalho. Essa seria, na época, uma herança do Brasil colônia. Segundo ele, o objetivo da aventura extrativista portuguesa era explorar rapidamente toda a riqueza disponível com o menor esforço e sem nenhum compromisso com o futuro: “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”. Isso, obviamente, moldou nosso futuro. Sao características que o Brasil mantem até hoje.
O que predominava no varejo daquela época? Como era a relação entre o dono da loja e o consumidor?
Com a chegada da corte e a abertura dos portos, o Brasil foi invadido por produtos ingleses. Chegava de tudo. Muitas coisas eram práticas e úteis, como tecidos de algodão, cordas, pregos, martelos, serrotes, fivelas de arreios e ferragens em geral. Mas havia também excentricidades como patins de gelo e pesadas mantas de lã, que causavam espanto sob o calor úmido e abafado dos trópicos. Eram produtos que as fábricas inglesas despejavam em quantidades monumentais e a preços baixos, graças às novas técnicas de produção desenvolvidas pela Revolução Industrial do final do século 18. Sem acesso ao mercado europeu, devido ao bloqueio continental imposto por Napoleão, a Inglaterra os despachava para o Brasil e outros países da América do Sul, onde desembarcavam por uma pechincha e causavam sensação entre os moradores, habituados à escassez e à má qualidade dos produtos pobres e artesanais que circulavam pelas colônias americanas. Uma forma de observar a sofisticação dos hábitos da sociedade carioca é ler os anúncios publicados na Gazeta do Rio de Janeiro a partir de 1808. No começo, oferecem serviços e produtos simples, reflexo de uma sociedade colonial ainda fechada para o mundo, que importava pouca coisa e produzia quase tudo que consumia. Esses primeiros anúncios tratam de aluguel de cavalos e carroças, venda de terrenos e casas e alguns serviços básicos. De 1810 em diante, o tom e o conteúdo dos anúncios mudam de forma radical. Em vez de casas, cavalos e escravos, passam a oferecer pianos, livros, tecidos de linho, lenços de seda, champanhe, água de colônia, leques, luvas, vasos de porcelana, quadros, relógios e uma infinidade de outras mercadorias importadas.
No Rio de Janeiro, a carne fresca, por exemplo, era uma raridade. Vinha de longe, de até mil quilômetros de distância. Viajando por estradas precárias, em boiadas que desciam de Minas Gerais ou do Vale do Paraíba, muitos bois morriam pelo caminho, de fome ou de cansaço. Situado perto do centro do Rio, o matadouro local era “da máxima sujeira”, segundo um relato da época. A carne de porco era vendida, igualmente, “em estado bastante doentio”, de acordo com o mesmo relato. Por essa razão, a carne seca, que chegava de muito longe, depois de tratada com sal e curada ao sol, era muito mais usada. O Rio Grande do Sul produzia trigo e gado, usado na fabricação de charque, mantas de couro, sebo e chifre. Suas fazendas eram gigantescas. Em 1808, o Porto do Rio Grande, com 500 casas e 2 000 habitantes, recebia 150 navios por ano, o triplo da vizinha Montevidéu. Exportava essas mercadorias para todo o resto do país e também para Portugal, África e os domínios portugueses nas Índias. Importava das outras regiões da própria colônia aguardente, açúcar, tabaco, algodão, arroz mandioca e doces em geral. E de Portugal, vinho, óleo, azeitonas, vidro, cordas, tintas, espingardas de caça, munições, facões e mercadorias inglesas como ferro, tecidos e chapéus. O contrabando dominava boa parte do comércio da colônia, apesar de todas as tentativas de combatê-lo. Metais e pedras preciosas escoavam pelo Rio do Prata, em direção a Buenos Aires. De lá, seguiam para a Europa, sem pagar impostos à coroa portuguesa.
Fonte: Por Ticiana Werneck, in www.consumidormoderno.com.br
Esse é o cenário em que se passa a obra do jornalista Laurentino Gomes, “1808 como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. Desde o seu lançamento há um ano, em setembro de 2007, mantêm-se entre os mais vendidos do país, com mais de 350 mil exemplares só no Brasil.
Resultado de uma pesquisa de dez anos, “1808” relata, as razões e as conseqüências da fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1807 e 1808.
Para Consumidor Moderno, conversei com Laurentino abordando exclusivamente a questão das relações de consumo naquela época.
Como eram as relações de consumo em 1808?
Laurentino Gomes: Na época da chegada da corte, o Brasil era uma colônia atrasada, ignorante e proibida, em que 98% dos habitantes eram analfabetos. Não havia ensino superior e imprensa. A circulação de livros era censurada e o direito de reunião para discutir idéias, proibido. Com um imenso território virgem, escassamente povoado, o Brasil tinha pouco mais de três milhões de habitantes – menos de dois por cento da sua população atual. De cada três brasileiros, um era escravo. O comércio era feito à base de escambo. Havia poucas moedas em circulação. E, obviamente, não existiam leis de proteção ao consumidor.
A relação entre consumo e cidadania existia? Como era essa consciência há 200 anos?
Imagine uma fazenda nos dias atuais no interior da Amazônia, sem estrada, energia elétrica, telefone, água tratada ou qualquer comodidade da vida moderna. Assim era o Brasil de duzentos anos atrás. Entre outras carências, a colônia precisava de estradas, escolas, tribunais, fábricas, bancos, moeda, comércio, imprensa, biblioteca, hospitais, comunicações eficientes. Em especial, necessitava de um governo organizado. Havia leis e juizes, mas poucas pessoas tinha acesso à Justiça. Nas vastas regiões do interior, a lei era aplicada pelos próprios fazendeiros e chefes locais, de acordo com seus interesses. Não havia qualquer noção de cidadania. Na capital a situação não era muito diferente. Nos treze anos em que a corte portuguesa esteve no Brasil, uma bomba populacional abalou o Rio de Janeiro. O número de habitantes, que era de 60 000 em 1808, dobrou em 1821. Metade dessa população era escrava. A criminalidade atingiu índices altíssimos. Roubos e assassinatos aconteciam a todo momento. No porto, navios eram alvos de pirataria. Gangues de arruaceiros percorriam as ruas atacando as pessoas a golpes de faca e estilete. Oficialmente proibidos, a prostituição e o jogo eram praticados à luz do dia.
Muito se diz da cordialidade do brasileiro. Esse é um traço de nossa gente que remonta da forma como fomos colonizados?
O historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico Raízes do Brasil, mostrou que o “homem codial” brasileiro não é necessariamente sinônimo de simpatia, gentiliza e eficiência no atendimento. Ao contrário, o brasileiro cordial é um tipo dissimulado, avesso ao esforço de crescimento e ao trabalho. Essa seria, na época, uma herança do Brasil colônia. Segundo ele, o objetivo da aventura extrativista portuguesa era explorar rapidamente toda a riqueza disponível com o menor esforço e sem nenhum compromisso com o futuro: “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”. Isso, obviamente, moldou nosso futuro. Sao características que o Brasil mantem até hoje.
O que predominava no varejo daquela época? Como era a relação entre o dono da loja e o consumidor?
Com a chegada da corte e a abertura dos portos, o Brasil foi invadido por produtos ingleses. Chegava de tudo. Muitas coisas eram práticas e úteis, como tecidos de algodão, cordas, pregos, martelos, serrotes, fivelas de arreios e ferragens em geral. Mas havia também excentricidades como patins de gelo e pesadas mantas de lã, que causavam espanto sob o calor úmido e abafado dos trópicos. Eram produtos que as fábricas inglesas despejavam em quantidades monumentais e a preços baixos, graças às novas técnicas de produção desenvolvidas pela Revolução Industrial do final do século 18. Sem acesso ao mercado europeu, devido ao bloqueio continental imposto por Napoleão, a Inglaterra os despachava para o Brasil e outros países da América do Sul, onde desembarcavam por uma pechincha e causavam sensação entre os moradores, habituados à escassez e à má qualidade dos produtos pobres e artesanais que circulavam pelas colônias americanas. Uma forma de observar a sofisticação dos hábitos da sociedade carioca é ler os anúncios publicados na Gazeta do Rio de Janeiro a partir de 1808. No começo, oferecem serviços e produtos simples, reflexo de uma sociedade colonial ainda fechada para o mundo, que importava pouca coisa e produzia quase tudo que consumia. Esses primeiros anúncios tratam de aluguel de cavalos e carroças, venda de terrenos e casas e alguns serviços básicos. De 1810 em diante, o tom e o conteúdo dos anúncios mudam de forma radical. Em vez de casas, cavalos e escravos, passam a oferecer pianos, livros, tecidos de linho, lenços de seda, champanhe, água de colônia, leques, luvas, vasos de porcelana, quadros, relógios e uma infinidade de outras mercadorias importadas.
No Rio de Janeiro, a carne fresca, por exemplo, era uma raridade. Vinha de longe, de até mil quilômetros de distância. Viajando por estradas precárias, em boiadas que desciam de Minas Gerais ou do Vale do Paraíba, muitos bois morriam pelo caminho, de fome ou de cansaço. Situado perto do centro do Rio, o matadouro local era “da máxima sujeira”, segundo um relato da época. A carne de porco era vendida, igualmente, “em estado bastante doentio”, de acordo com o mesmo relato. Por essa razão, a carne seca, que chegava de muito longe, depois de tratada com sal e curada ao sol, era muito mais usada. O Rio Grande do Sul produzia trigo e gado, usado na fabricação de charque, mantas de couro, sebo e chifre. Suas fazendas eram gigantescas. Em 1808, o Porto do Rio Grande, com 500 casas e 2 000 habitantes, recebia 150 navios por ano, o triplo da vizinha Montevidéu. Exportava essas mercadorias para todo o resto do país e também para Portugal, África e os domínios portugueses nas Índias. Importava das outras regiões da própria colônia aguardente, açúcar, tabaco, algodão, arroz mandioca e doces em geral. E de Portugal, vinho, óleo, azeitonas, vidro, cordas, tintas, espingardas de caça, munições, facões e mercadorias inglesas como ferro, tecidos e chapéus. O contrabando dominava boa parte do comércio da colônia, apesar de todas as tentativas de combatê-lo. Metais e pedras preciosas escoavam pelo Rio do Prata, em direção a Buenos Aires. De lá, seguiam para a Europa, sem pagar impostos à coroa portuguesa.
Fonte: Por Ticiana Werneck, in www.consumidormoderno.com.br
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